Padmasambhava e o Mistério do Pós-Vida: Desvendando o Bardo Thodol

Padmasambhava e o Mistério do Pós-Vida: Desvendando o Bardo Thodol
Photo by Denys Nevozhai / Unsplash

O que realmente acontece depois do nosso último suspiro? Será que o "eu" se dissolve no vazio ou atravessa portais além da compreensão humana? Hoje, vamos explorar um dos textos mais profundos e enigmáticos do budismo tibetano: o Bardo Thodol, conhecido no Ocidente como o Livro Tibetano dos Mortos. Imagine um guia que nos acompanha pelos momentos mais misteriosos da existência; este é o papel do Bardo Thodol, um mapa espiritual do que ocorre após a morte física.

Origem e Propósito do Bardo Thodol

O Bardo Thodol foi criado por Padmasambhava, uma figura quase mítica e reverenciada no budismo tibetano. Nascido na Índia no século VIII, ele é conhecido como o responsável por introduzir o budismo no Tibete. Padmasambhava não era apenas um monge, mas um mestre espiritual profundo, um iogue que dominava técnicas místicas e ensinamentos esotéricos.

Sua obra, o Bardo Thodol, não é um manual sobre o fim da vida, mas um guia espiritual que orienta a jornada da alma após a morte. Padmasambhava via neste texto uma forma de proporcionar libertação espiritual mesmo depois do último suspiro, acreditando que a morte oferecia uma oportunidade única de iluminação, especialmente se a mente conseguisse reconhecer a luz clara – a essência pura da mente.

A Jornada pelos Bardos: As Três Fases Após a Morte

O Bardo Thodol descreve três estados principais ou “bardos” que toda alma atravessa após a morte:

1. Chikai Bardo: O Momento da Morte

O Chikai Bardo é o estado onde a alma experimenta o momento da morte. Aqui, o corpo físico se dissolve, libertando a consciência de suas limitações materiais. O Bardo Thodol descreve esse momento como um encontro com a "luz clara", uma luz intensa e pura, que representa a natureza absoluta da mente, um estado de consciência incondicional, livre de dualidades, medos e apegos.

Para os praticantes espirituais, reconhecer essa luz clara é uma oportunidade de libertação final. No entanto, para aqueles despreparados, a intensidade da luz pode ser assustadora, levando a alma a se afastar desse momento de liberdade e a prosseguir para os estágios seguintes dos bardos, onde enfrentará visões cada vez mais distorcidas e limitantes, conforme seus tendências cármicas.

2. Chonyid Bardo: O Bardo das Visões

Como disse o famoso psicólogo Carl Jung, "deuses e demônios são projeções do inconsciente, poderosos e inescapáveis até que sejam compreendidos como partes de nós mesmos". No Chonyid Bardo, a alma se encontra em um estado de consciência desprendida do corpo físico, mergulhando em uma dimensão onde as fronteiras tangíveis deixam de existir. Nesse bardo, a alma vivencia projeções da própria mente, que podem aparecer tanto em formas angelicais quanto em visões assustadoras.

Este estágio revela a essência da mente, onde tudo o que foi reprimido, desejado ou temido emerge de forma intensificada. Essas projeções se manifestam em duas formas distintas: visões pacíficas e visões iradas.

Visões Pacíficas

Inicialmente, a alma é recebida por deidades pacíficas, que representam os aspectos iluminados e benevolentes da consciência. Essas figuras podem aparecer como budas ou deidades de luz, emanando as qualidades positivas cultivadas pela alma ao longo de suas vidas.

Visões Iradas

Se a alma não reconhecer a natureza essencial dessas visões pacíficas, será gradualmente confrontada por visões mais intensas, conhecidas como deidades iradas. Estas são manifestações de raiva, medo e desejos reprimidos, que assumem formas monstruosas e assustadoras. Essas deidades iradas não são entidades externas, mas expressões do próprio psiquismo, refletindo as paixões e apegos que ainda prendem a alma ao ciclo de sofrimento.

3. Sidpa Bardo: O Renascimento

No Sidpa Bardo, a alma encara o momento decisivo da escolha de seu próximo corpo, um processo guiado pelas energias acumuladas de suas ações passadas – o karma. Neste estágio, a alma se encontra em um estado de maior densidade psíquica, onde o desejo de renascimento se intensifica, impulsionado pelos medos e apegos que ainda não foram superados.

A escolha de um novo corpo não é consciente, mas guiada pelas tendências emocionais e cármicas. Nesse estágio, o Bardo Thodol sugere que a alma deve manter-se em um estado de desapego e lucidez para que consiga romper o ciclo do samsara – o interminável ciclo de nascimento e morte.

O Papel do Bardo Thodol na Preparação Espiritual

O Bardo Thodol não foi escrito apenas para guiar os mortos, mas para preparar os vivos. Padmasambhava acreditava que a preparação espiritual em vida poderia auxiliar a mente a manter a clareza e o desapego necessários nos bardos. Assim, o estudo e a recitação do Bardo Thodol oferecem à mente um treinamento, uma chance de familiarizar-se com a natureza essencial da mente e, assim, reconhecer a luz clara durante a transição pós-morte.

Através da prática e da contemplação, a alma pode aprender a se desapegar das ilusões e a focar na natureza pura e incondicional da mente, o que, segundo o budismo tibetano, representa o verdadeiro caminho para a libertação.

Reflexões Finais: A Luz Clara e a Libertação

O Bardo Thodol é mais do que um texto sobre o pós-vida; ele é um convite à autodescoberta e à transcendência. Em sua essência, ensina que todos os medos, desejos e visões intensificadas que surgem após a morte são apenas reflexos da própria mente. Reconhecer que essas visões são projeções de nossa consciência nos permite dissipar o medo, alcançar a paz e, talvez, a iluminação.

Assim, o Bardo Thodol nos oferece uma compreensão única da morte: não como um fim, mas como um portal para a libertação, uma última oportunidade de transcendência. Afinal, para o budismo tibetano, a verdadeira morte não é o fim do corpo físico, mas a incapacidade de reconhecer a própria essência, a luz clara, que reside dentro de todos nós.

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